Gonçalo não escolheu ser padre. Nascido em um convento no interior da Bahia, e encaminhado para um internato beneditino aos dez anos de idade, tornar-se um religioso era como um evento fisiológico, tão natural quanto nascer, envelhecer e morrer. Recém-ordenado, é encaminhado para Amarante, no sertão de Pernambuco. Um jovem inexperiente deveria cumprir quietinho o seu papel: assegurar o poder da Igreja e oferecer apoio político ao prefeito, Francisco Sousa.
A ordem social de Amarante era simples: as terras eram de Sousão. Os desvalidos que nelas moravam tinham por obrigação primeira cultivar o algodão do coronel. Em troca, ganhavam o direito de construir sua casinha e manter um roçado.
Essa ordem é rompida quando o forasteiro Gonçalo descobre uma furna de água perene naquele rincão esturricado. Água o ano inteiro, verdadeiro milagre! Gonçalo só podia ser santo! Os camponeses deixavam a lida nas roças de Sousão e iam-se arranchar ao redor da fonte d’água milagrosa. O coronel perdia os braços para cultivar o algodão e via seu poder político ameaçado.
Gonçalo é obrigado a lidar com a brutalidade do prefeito, o despeito do bispo, a adoração do povo, e o alvoroço no próprio peito toda vez que avista Pia, moça bonita, agregada da casa-grande do coronel.
Da primeira vez que li esta obra prima, fiquei impactado, passei um domingo inteiro mergulhado na narrativa até chegar ao fim. Na releitura que conclui nos últimos dias, consegui ter as mesmas sensações, talvez até mais intensas, e terminar com o mesmo gosto agridoce na garganta.
O Santo de Amarante nasce, para mim, já como um clássico. A escrita da autora, que conheço há um bom tempo, mantém as qualidades de sempre. Um português impecável, personagens dolorosamente humanos e realistas e uma sensibilidade aguçada que vai muito além da técnica literária.
Aqui temos um verdadeiro romance de formação, onde acompanhamos Gonçalo desde o nascimento, e vivemos essas experiências com ele, a descoberta da vida, e perda da inocência, o despertar do senso de justiça e todas as dores e delícias de enxergar o melhor e o pior do ser humano.
Além da construção primorosa dos personagens, temos toda a trama que, embora fictícia, é inspirada nos episódios do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no Ceará, e das Ligas Camponesas, em Pernambuco e na Paraíba. Tudo costurado com uma percepção apurada dos costumes e práticas de uma região em determinada época. As descrições são precisas e fluídas, sem aquele ar de reportagem em que muitos autores acabam se perdendo. E os personagens se tornam reais para o leitor, pois suas ações são consonantes a sua construção, com diálogos escritos com maestria, cada personagem com sua voz, linguagem e maneira de falar.
Um livro incrível que eu espero e confio que alçará grandes voos, porque não é só uma delícia de se ler (entre sorrisos e lágrimas), é necessário.
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