segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Flashback - Prólogo e Capítulo 1




Bom dia, pessoas e cabos-eleitorais. Para quem não sabe, estou lançando um novo livro pela editora Cata-vento, chamado Flashback (detalhes AQUI). O livro já está impresso e em breve estará disponível para os leitores. Se você ainda está em dúvida se alguma coisa escrita por mim pode prestar, hoje disponibilizo o prólogo e o primeiro capítulo da obra, para leitura online e gratuita. 
Leiam e tirem suas próprias conclusões.
Te vejo no futuro (ou no passado)



FLASHBACK: Duas Vidas em Rota de Colisão

PRÓLOGO

Onde estou?
O que está acontecendo?!
Não sei que lugar é esse, nem como vim parar aqui. Meus olhos se acostumam com o novo cenário, voltando ao foco natural. Em frente a mim, depois de um amplo painel de vidro, algumas pessoas assistem o que quer que esteja acontecendo comigo. Semblantes sérios na sua maioria, apreensivos, eu diria.
Sinto minhas mãos presas, não consigo sair do lugar. Observo com maior atenção os meus dedos tremelicantes e percebo que minha pele está mais escura, negra. Meus dedos também não são tão grossos quanto os atuais. Sinto meu corpo preso a uma cadeira, tiras de couro cerceiam todos os meus movimentos. Percebo que, assim como meus dedos, meu corpo está diferente, maior, mais robusto; não sinto a minha magreleza de sempre.
Há um burburinho no ar, várias vozes que eu não conheço conversando aos sussurros coisas que eu não consigo entender. De repente, dois homens fardados passam à minha frente. Um deles carrega um balde; o outro, uma esponja amarelada e velha. O sujeito da esponja mergulha o objeto no balde e ele retorna ensopado. Olhando para mim de uma forma doentia e maldosa, o homem coloca a esponja sobre minha cabeça, que acabo de perceber estar raspada.
Assim que aquele objeto molhado toca minha cabeça, a água começa a escorrer pelo meu rosto. Algumas gotas entram em minha boca e sinto um gosto salgado. Logo em seguida, o homem que carregava o balde sai do meu campo de visão e retorna com um objeto estranho, um tipo de mini-capacete com correias de metal. Enquanto o sujeito da esponja segura 6 meu rosto, o outro coloca aquela coisa em mim, prendendo as correias sob meu queixo e apertando a pele do meu rosto sem o mínimo sinal de delicadeza.
Os dois homens se afastam, um deles se posta ao meu lado, de modo que consigo vê-lo com minha visão periférica. O outro eu não vejo. Sinto um desespero enorme enquanto tento me livrar das amarras que me prendem àquela lúgubre cadeira. Então eu paro, congelo de uma forma inexplicável, assim que o homem fardado ao meu lado começa a falar:
— Senhor Martin Malcolm Silva, de acordo com a lei federal, e conforme decisão de um tribunal do júri legalmente constituído, você será executado na presente data. A eletricidade passará pelo seu corpo até que seu coração pare e seu organismo não mais funcione. Deus tenha piedade de sua alma
O homem termina de falar e assente com a cabeça para alguém atrás de mim. Em seguida um ruído de eletricidade invade meus ouvidos violentamente. As luzes piscam e meu coração dispara de forma vertiginosa.
Eu não entendo o que tudo isso significa. Eu fui condenado à morte; mas eu não sou “eu”! E o que “eu” fiz para ser condenado? Agora sei que aquelas pessoas além do vidro estão aqui para me assistirem morrer. A eletricidade passará pelo seu corpo até que seu coração pare, ele disse. Mas não quero que meu coração pare!
Um homem vestindo um terno preto com um colarinho estranho se aproxima de mim. Diferente dos fardados, traz um semblante sereno, amigável. Eu quase me sinto bem ao olhá-lo nos olhos; dois olhos azuis apagados, com cataratas a lhe roubar a cor, emoldurados por uma pele enrugada, fustigada pelo tempo. Segurando um livro grosso de capa preta, ele coloca a mão sobre o meu ombro e diz:
— Deseja fazer uma última declaração, filho? – Ele pergunta.
Eu não sei o que dizer. Nem mesmo sei o que está de fato acontecendo, e por que está acontecendo. A confusão toma conta de todo o meu ser, sinto vontade de chorar, e perpetuo o desejo deixando verter lágrimas encorpadas que se empossam abaixo dos meus olhos, sobre olheiras protuberantes que sinto arderem.
Minha cabeça dói; minha boca seca tem um gosto rançoso, amargo. Não sei como, nem por que, mas três palavras se repetem em minha mente, e algo indescritível e inexplicável me diz que devo proferi-las. Sem saber o que fazer, nem o que pensar, deixo que aquela sensação guie meus atos e liberto as palavras que pedem para serem ditas.
— Eu sou INOCENTE!
A luz se apaga.


QUEM É MARK357?  

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Cotidiano (Chico Buarque)

Mark357 acordou suado como uma atleta em treinamento. Mas Mark357, ou Mark, como gostava de ser chamado, estava longe de ser um atleta. Na verdade, a única atividade física que conhecia começava no pulso e terminava nas pontas dos dedos.
Ele buscou o copo d’água na mesinha ao lado da cama e tomou um gole vigoroso. O gosto rançoso do líquido adormecido e contaminado pela saliva desde a noite anterior o fez mostrar uma careta. Mark esfregou nervosamente os cabelos ruivos desgrenhados, com cachos caindo para todos os lados e apontando para todas as direções imagináveis.
Aqueles sonhos eram recorrentes, e já começavam a incomodar o rapaz. Mark não conseguia se lembrar com precisão do que sonhara, mas lembrava de ser chamado por outro nome, um nome que sua memória insistia em não recordar. Toda vez que tinha aqueles sonhos, que pareciam tão reais, passava o dia todo com dores de cabeça terríveis, e com o humor ainda pior.
Reunindo o pouco de força que seu corpo sedentário possuía, levantou-se e foi em direção à cozinha. Abriu armário e ficou cerca de dois minutos escolhendo o sabor do seu insosso desjejum. Ele sempre fazia aquilo, e até então não entendia por que, já que todos tinham o mesmo gosto-sem-gosto de pomada para assadura. Mark espremeu o tubo flexível na boca e engoliu todo creme, que deveria sustentá-lo nas próximas 8 horas, ou pelo menos assim informavam as microscópicas instruções contidas na embalagem. Ah, como gostaria de comer um alimento de verdade, pensava vez ou outra, assim como meus bisa ou tataravós.
Após um banho frio e relâmpago, vestiu o uniforme de trabalho e entrou na cápsula de transporte. A viagem pelos tubos, do apartamento até o trabalho, levava exatos dezesseis minutos, tempo que costumava aproveitar para tirar um breve cochilo. Os cientistas do governo afirmavam que quatro horas de sono eram absolutamente suficientes para que o corpo humano se recuperasse de um dia de trabalho, ficando apto para a próxima jornada. Mas, na condição de funcionário do governo, Mark jamais acreditava em alguém que trabalhasse para o governo.
Bocejando, o jovem ruivo saiu da cápsula e ocupou seu posto de trabalho, onde permaneceria pelas próximas 16 horas, conforme estava expresso em seu contrato. O mesmo contrato onde constava que Mark exercia a função de maquiador de cadáveres. Apesar de não ser bem verdade, também não era uma completa mentira.
Mark formara-se no curso técnico em computação gráfica e modelagem tridimensional, aproximadamente seis anos atrás. Como, já naquela época, toda forma de ensino era feita à distância, ninguém tinha conhecimento de sua verdadeira formação. Um dia após a chegada de seu diploma pelo correio magnético, dois oficiais da Governança Global “bateram” à sua porta e lhe ofereceram um emprego. O salário era atrativo e Mark estava desempregado. Visto que a única exigência de seu futuro empregador era “não fazer perguntas”, o técnico recém formado aceitou a proposta de imediato.
O trabalho de Mark consistia em “recriar os mortos” em modelos tridimensionais no ambiente virtual de um software. As famílias de todos os cidadãos falecidos, desde o ano 4500, velavam os corpos de seus entes queridos acreditando que aquilo era real, quando, na verdade, choravam sua perda diante uma imagem holográfica projetada com a perfeição da mais avançada tecnologia jamais criada pelo homem moderno.
O destino dos mortos de verdade era algo deveras sigiloso, e que o contrato de Mark o proibia de saber. No entanto, ele sabia. E ninguém mais sabia que ele sabe o que sabia. A realidade dos fatos era que todos os defuntos frescos em estado recuperável se convertiam em força de trabalho para a Governança Global. Os cientistas do governo chegaram à conclusão que ciborgs são bem mais duráveis e fáceis de fabricar que robôs trabalhadores.
E como é que Mark357, um cidadão comum, funcionário do governo do baixo escalão, com acesso restrito a informação, sabe de tanta coisa? A resposta é simples, além de ser complexa.
Mark é um hacker!
O técnico ruivo que oficialmente é maquiador de cadáveres foi escolhido para um trabalho tão secreto por dois motivos básicos. Primeiro, Mark não tem família; segundo, Mark não conhece o significado da expressão “vida social”. O que a Governança não conseguiu constatar em suas investigações em busca de força de trabalho é que Mark357 era muito mais que um nerd sem família e sem amigos.
Quando Mark tinha apenas sete anos de idade, a Governança expedira normas e regulamentos que classificavam o acesso à internet por civis, sem autorização expressa expedida pela autoridade máxima da região, como crime. Todos os pontos de acesso não pertencentes ao governo foram destruídos. Porém, a curiosidade nasceu cedo no pequeno menino ruivo e de pele pintada. Aos dez anos já era capaz de encontrar furos no sistema e acessar a rede por meio de uma tomada de energia elétrica. Agora, com vinte e dois anos, era capaz de entrar em qualquer computador dentro do país. 

**

Sentado em frente ao computador, Mark aguardava o próximo corpo chegar pela esteira elétrica. Com o pressionar de um botão, um novo cadáver era trazido para sua presença. Então, o funcionário do governo tratava de modelar virtualmente um modelo idêntico ao presunto recém perecido.
Mark trabalhava naquele dia de forma mecânica, quase como uma máquina, pois seus pensamentos estavam longe, muito longe. Sua mente estava irrequieta, agitada. Seus pensamentos estavam nos sonhos, ou melhor, nos pesadelos, que tanto o perturbavam e que já estavam ficando insuportáveis. Na noite anterior sonhara com a cadeira elétrica, mas outras vezes sonhava com seu trabalho, repetia sua rotina diária, “maquiava” uma porção de cadáveres até que, ao chegar ao último serviço do dia, se espantava ao perceber que o rosto do “presunto” da vez era idêntico ao seu. 
Mas naquele momento, o que o perturbava eram as imagens na sala de execução. Já perdera as contas de quantas vezes estivera ali e, ainda assim, não conseguia guardar detalhes, como os rostos das pessoas presentes ou o nome pelo qual o guarda o chamara. No entanto, tinha uma sensação de que aquela loucura era mais que apenas um sonho. Mas o que significava tudo aquilo? Mark não sabia, mas precisava descobrir.
Já havia se passado quase 5 horas desde que chegara ao trabalho. Ainda havia mais de 11 horas a cumprir. A jornada laboral a qual era submetido a cumprir fora calculada por especialistas. Às dezesseis horas seriam, supostamente, o tempo ideal para “maquiar” doze corpos. No entanto, Mark era capaz de concluir todo o trabalho de um dia com aproximadamente duas horas, mesmo que naquele dia sua produtividade não estivesse em seu normal. Depois dos pesadelos os dias eram sempre assim.
Após terminar sua cota de corpos modelados, Mark sempre tinha um grande período de tempo livre à sua disposição. O que ele fazia com todo esse tempo ocioso? Ele navegava! E quando se invade sistemas secretos de um governo totalitário, se descobre muita coisa; coisas as quais não deveria nem sonhar em saber.
O nono cadáver do dia chegou, junto dele um cartão de memória no qual Mark salvaria seu trabalho após a conclusão. Depois de pressionar novamente o botão, o corpo desapareceu pela esteira da mesma forma que entrou.
Hoje é dia de pagamento, pensou Mark, escapulindo de seus devaneios sobre os pesadelos, enquanto terminava seu último cadáver do dia. Apesar de receber um salário razoável, Mark quase não gastava. Seu salário era de S$ 2.000,00 (Dois mil sambas), que, em tempo pretérito, equivaleria a 6.000 dólares. Contudo, sua renda não era suficiente para que pudesse realizar seus anseios, por isso, economizava cada samba que recebia, gastando apenas com comida. E com Alexia, é claro. Mas isso é conversa para depois.
Como o dinheiro físico a muito fora extinto, era necessário ir até um prédio do governo e utilizar um de seus terminais eletrônicos controlados, onde se podia realizar transações de compra e efetuar pagamentos. Mark poderia fazer isso de sua casa, se quisesse, fazendo uso de suas habilidades em tecnologia. Mas não havia motivo para correr tal risco.
As economias de Mark já atingiam um montante considerável, que, no futuro, serviriam para realizar seu sonho: mudar-se para o nível 13. Atualmente ele ocupava um apartamento modesto no nível 5, e pretendia ficar por ali até poder comprar seu imóvel dos sonhos. O “13” era o último nível, e o único do qual era possível desfrutar da luz solar.
Com o crescimento industrial no antigo Brasil, as cidades foram divididas em níveis. No distrito BH024 da região 2, onde Mark morava, havia treze. O nível um era o mais baixo, afixado por sobre o solo, os seguintes eram empilhados uns sobre os outros, como cidades construídas sobre cidades. O 13 era o nível dos magnatas, dos políticos e dos artistas. Apenas os mais abastados tinham condições de morar lá.
Mark não via a luz do sol desde que tinha quinze anos.

**

16 horas cumpridas. Enfim, Mark podia ir para casa. Adentrou a câmara de transporte pneumático, aproximou sua mão do visor biométrico e informou o destino:
— Sede da governança BH024.
Imediatamente a cápsula foi disparada, levando Mark a uma velocidade que vez ou outra o deixava nauseado.  Cinco minutos mais tarde ele aportou na sede da Governança: um prédio enorme, localizado à margem dos “níveis”, onde centenas de pessoas passavam apressadas de um lado para o outro; funcionários e cidadãos comuns. Toda a economia de espaço perpetuada pela criação dos níveis era um paradoxo quando se considerava as dimensões da sede. Com um pé direito de aproximadamente 10 metros, o prédio era digno de um castelo medieval, com quilômetros cúbicos de espaço ocioso. Um luxo o qual a maior parte da população não possuía em suas residências minúsculas e abafadas.
Mark se dirigiu a um terminal eletrônico e fez, rapidamente, sua compra de mantimentos mensal. Aquilo não tomava muito tempo, pois não havia o que escolher, apenas aquela “maldita comida de astronauta” como ele costumava dizer. Finalizado o procedimento, Mark transferiu o saldo excedente para sua conta de economias e deixou o prédio da Governança tão logo a transação foi confirmada.
Agora sim, iria para casa, usufruir de suas míseras quatro horas de sono indicadas pelo seu empregador.
Mas Mark não queria dormir. Por que dormir significava sonhar; e sonhar significava morrer.


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